Descoberta durante redescoberta

Felipe Afonso
10 min readJun 28, 2021

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“A complexidade do sistema nervoso é tão grande, seus vários sistemas de associação e massas de células são tão numerosos, complexos e desafiadores, que a compreensão repousará para sempre muito além de nossos esforços engajados.”
Santiago Ramón y Cajal (1909)

Os resquícios dourados da tarde mais esperada do semestre vão se esvaindo junto com a distância entre as cadeiras dos dois. Como de costume, a sintonia só aumentava no decorrer do animado papo. A voz de Nicholas costuma soprar nos ouvidos de Jill os intensos ventos do passado, criando ondulações nostálgicas em sua consciência, praqueles tempos de tanto tempo ainda à frente, tantos livros dissecados, tantos olhares encaixados, do futuro a maior das incógnitas, em que a tarefa corriqueira era seguir rumo ao horizonte da vida despreocupado. Passavam noites tentando acertar pedras nas estrelas com o intuito de medir a distância que elas estão de nós. Mas veio a vida adulta e suas obrigações. A presença de ambos num mesmo espaço físico passou a ser sempre despriorizada, talvez pelo medo da magnitude do que o destino reservasse para ambos. Tanto enrolaram que o universo resolveu intervir. Mas não o nosso universo. E sim um estranho universo que Albert Einstein teimou em aceitar. Um universo em que Nicholas e Jill dedicaram suas carreiras a entendê-lo. Quando suas pesquisas se complementaram, não hesitaram em trabalhar juntos. À noite iriam finalmente ver o resultado de meses de pesquisas sobre partículas virtuais e calibração dos instrumentos. Gostariam que Einstein estivesse presente. Talvez ele venha em espírito, pensaram.

Naquela tarde, resolveram descontrair, numa espécie de controle de ansiedade para a missão da noite. Resgataram um de seus passatempos prediletos, o de inventar histórias após algumas cervejas, embalados por contos de ficção científica, uma maneira de manter em forma as estranhas ideais com as quais trabalhavam.

- A questão é que quanto mais profundo vou, mais a realidade fica abstrata. E o pior é que cada dia confio menos nas lembranças que tenho daquele dia. Algumas pessoas alegam terem vistos coisas estranhas no céu, outras tiveram experiências de quase morte conscientes. Coisas bem comuns. Por que será que o que presenciei naquele dia foi tão peculiar? - Nicholas tentava ditar um novo rumo para o raciocínio.
- Será que algum corte no orçamento os levou a trocar naves espaciais por ônibus e agora vamos ver marcas de pneus de ônibus nos desenhos das plantações?
- Iriam ter que caprichar no design para suprir a ausência de cores.
- Como assim? Não havia cores no ônibus?
- Nenhuma. Era como se os objetos também absorvessem a frequência que dá cor a eles em vez de refleti-las.
- E como diabos você conseguia enxergá-los?
- Da mesma forma que um bem-te-vi não usa chinelo.
Jill ficou pensativa por uns instantes, mas desistiu. Nicholas continuou:
- Sabe quando só percebemos a presença de uma árvore no nosso campo de visão quando o vento balança suas folhas? Foi através desse “vento” que eu percebi as outras pessoas e assentos. Não era a agitação mecânica das moléculas de ar como de costume, mas estranhamente um vácuo percebível que estava sendo perturbado pela nossa presença. Mas não faço a menor ideia de qual sentido vieram os dados para essa interpretação por parte do meu cérebro. O que mais me assustou é que também percebi uma presença de algo vivo que não é daqui. Era como se por uns instantes eu e tudo no ônibus estivéssemos na dimensão dele. Meio que ele combinava com a espécie de paisagem do lado de fora do ônibus. Ambos eram estranhamente percebíveis apesar de não terem cor.
- Então não havia árvores em vários tons de verde e casas coloridas ao olhar pela janela?
- Suspeito que aquela paisagem refletisse frequências fora do nosso espectro visível, talvez aquele ser estivesse apreciando algo bem colorido quando o ônibus invadiu o espaço dele.

O papo desvairado dos dois arrancava olhares curiosos de algumas mesas próximas. Nicholas percebeu que complicara demais a história, reflexo do trabalho conjunto em mecânica quântica que vêm realizando com Jill. Naquele dia talvez o trabalho dos dois dê uma guinada que jamais imaginaram. E com isso talvez suas histórias também melhorem.

Chegou a vez de Jill tomar as rédeas na brincadeira, tentando ser poética como sempre, e num gole só de ar soltou:
- Perambulando, esbarrei com as colinas de um povoado, e ao subir algumas delas precisei da ajuda dos nativos para contornar algumas pedras, enquanto em outras driblei íngremes penhascos arrancando aplausos das folhas das árvores que agora usufruíam do vento cortado pela minha presença.
- Do alto dessas colinas vi a disposição das partículas elementares do mundo em que eu vivia. Vi que existiam muito mais moléculas do que julgara. Percebi que a minha realidade era apenas tudo o que eu acreditava. Todo o resto era matéria escura em minha vida. Oculta e onipresente. Mas não para os outros. Cada um tinha suas próprias crenças e desejos, suas próprias células e forma de viver.
- Embalada pela descoberta arrisquei a subir algumas altas cordilheiras, tão altas que os ventos misteriosos e instigantes vindos do futuro se intensificaram, mas olhando para lá continuava enxergando apenas a planície do presente horizonte adentro. O presente estava em tudo, por mais que procurasse o futuro - Jill fez uma pausa para respirar. - Eu continuo ou você continua?
- Deixa comigo - Nicholas estava atento como sempre. - E descansa agora sem pressa para retomar a jornada enquanto controla a curiosidade sobre os lugares de onde é possível se enxergar mais alto do que as montanhas. O que será que existe para além de tudo o que já conseguiu ver até hoje para lhe atiçar tanto?
- Será que se um dia chegar no penhasco mais alto do universo, a um passo de ver tudo o que um dia almejou e mais um pouco, ainda terá a mesma importância que tem hoje? O que será que há de tão belo nessa vista que nos causa um momentâneo prazer a cada degrau que subimos? Será que subirá o último degrau? Ou a saudade da jornada para chegar até ali a fará dar meia volta?
- E aí mocinha, você ou eu?
Jill assume novamente:
- Talvez agora esteja precisando de um espelho para enxergar melhor o que almeja de verdade, e não de uma nave espacial que voe até o ponto mais alto do universo.

Continuaram por esses e outros devaneios até a noite chegar. Jill sempre deixava brechas abertas em suas histórias de propósito, pois essa habilidade de Nicholas de decifrá-las e continuá-las era uma de suas maiores diversões. Assim como as lacunas sem solução em seu trabalho que Nicholas sempre dava um jeito de contornar. Ainda hoje ela se pega com saudades da época que não haviam visto nada além de planícies. Muito menos colinas. Hoje está de volta à sua terra natal, pés ainda meio calejados de tanta andança, porém finalmente com tempo para ler os versos que escrevera com a caligrafia confusa de suas sensações.

Quando todos os instrumentos finalmente acertaram o tom, os dois interromperam a brincadeira e se viraram para apreciar melhor o concerto improvisado que acontecia algumas mesas adiante. Os belos olhos castanhos de Jill reluziram as luzes das primeiras lâmpadas do palco sendo acesas, e as primeiras notas da noite começam desafinadas como de costume.

Após algumas músicas e muitas outras cervejas, Nicholas começa a viajar no ouvido de Jill:
- Por que diabos esse solo nos faz enxergar o capricho do universo em cruzar o destino de nós dois, dessas dezenas de pessoas no restaurante e daquele maluco de guitarra no palco? E logo hoje, no dia que em finalmente vamos colocar aquela coisa louca pra funcionar? Essas harmoniosas notas que insistem em nos levar para uma dimensão onde tomamos consciência de que nossa pesquisa valeu a pena. Nessa vibe logo iremos transcender lá não sei para onde, porém o ainda inexistente futuro já nos dá uma prévia daquilo que nos aguarda. Que música irada!

Jill puxa sua cadeira para o lado de Nicholas, repousa seus sedosos cachos no ombro dele, reacendendo uma chama que foi deixada branda por anos e que agora ajudava a iluminar os últimos vazios do momento de eternidade que era criado sempre que estavam juntos. Estavam curtindo o show, até que o alarme no celular de Jill toca.
- Nicholas, chegou a hora.

O caminho de volta ao laboratório nunca foi tão longo como naquela noite. Talvez o experimento de suas vidas. Viram coisas estranhas acontecerem no laboratório durante os testes preliminares, mas naquele momento iriam entender o motivo delas terem acontecido. Estavam receosos do impacto disso em suas percepções da realidade. Passariam a ver o mundo como uma coisa super interessante, ou ele perderia a graça? Seriam os primeiros a saber. Talvez a verdade não estivesse lá fora. Ligaram as máquinas e aguardaram, ficando apenas tentando imaginar o que estava acontecendo a nível elementar da matéria.

Os olhares enfeitiçados pela luz branca do monitor foi o farfalhar das asas da borboleta que um estranho universo a tanto esperava. Um breve clarão os privou da passagem do tempo por uma fração de segundo. De repente tudo escureceu e o tempo voltou ao normal. Mas todo cenário da noite estava ao contrário. O laboratório e tudo o que ele continha havia sumido.
As pálpebras de Nicholas voltaram a se mexer ao ritmo de sua consciência. Ainda meio atordoado por uma overdose de sensações estranhas percebe incrédulo a ausência de evidências de estar sonhando.
- Jill!
- Estou aqui no mesmo lugar, me dê sua mão.
- O que será que houve? Que céu bizarro é esse?
- Não faço a menor ideia.
Instantes antes estavam aprisionados em suas rotinas enquanto inconscientemente procuravam o caminho para um lugar onde sozinhos jamais conseguiriam alcançar. Mas parece que agora esse lugar decidiu se revelar a eles, e perceberam que ele sempre esteve o tempo todo em todos os lugares, esperando para ser visto com olhos devidamente treinados.
Agora, estavam ainda ali, no mesmo laboratório, porém o cenário acima dele estava confuso e assustador, como se a matéria bariônica que apreciavam diariamente tivesse sido rebaixada a coadjuvante numa difusa dança de protagonistas misteriosos ao som dos sentimentos confusos que eles causavam, a ponto de unirem seus cinco sentidos num só.

Um forte vento abranda a tentação de se sentirem acima da vida e da morte. Estavam com medo de processar o que estavam vislumbrando enquanto percebiam que nada mais importava, nem suas próprias existências. Se antes, meros mortais como qualquer um, não aceitavam inquietos nenhuma indefinição acerca dos maiores mistérios, imagina agora que perceberam a insignificância de tudo o que sempre anseiaram.

Como num sonho, não tiveram oportunidade de explorar o cenário em que estavam, estavam presos na cadeira e o choque de multi-sensações limitavam seus movimentos.
Por alguns minutos, se tornaram novamente alunos, dessa vez da aula mais interessante de suas vidas. Não havia professor, apenas um cenário a apreciar. Sentiram uma raiva tremenda quando ouviram o sinal de que aula acabara. O experimento terminara. O fim foi tão fulminante quanto o começo.

A mesma ausência repentina de sentidos atingiu novamente Jill e Nicholas. Estavam de volta. O monitor ainda emitia a luz branca, dessa vez mostrando os resultados do experimento. Não havia mais mistério. Iriam ter que arranjar um novo nome para a matéria escura. Combinaram de deixar essa tarefa para o dia seguinte, pois o trabalho daquela noite rendeu mais que o esperado.
Saíram do laboratório e caminharam lado a lado pela rua quase deserta. O ar frio inspirado por Nicholas lhe dava energia para perceber o impacto do reflexo das luzes da cidade no asfalto recém molhado pela chuva. Cada ponto luminoso representava uma esperança chegando ao fim como uma bela música em suas notas finais. Ele, que vivera tão intensamente seus versos e refrãos, em pensamento agora aplaude o que cada música daquela representou para ele. Mas agora o silêncio do fim do disco se aproxima. Inspira fundo e tenta se lembrar das outras vezes que apreciava tais circunstâncias climáticas, mas nada se compara com a sensação de agora.

Nicholas resolveu engolir o receio de quebrar o silêncio.
- O que faremos agora?
- Estou na dúvida entre escrevermos um livro e criarmos um canal na Internet - Jill já estava mais calma.
- Ou esperamos algumas décadas e resgatamos a era dos anciãos contadores de histórias.
Nicholas percebeu que sua inocente pergunta talvez arrastasse Jill para um abismo por onde eles vinham cambaleando pela borda desde que viram a matéria do avesso. Agora juntos carregavam o fardo de saber. Quais seriam agora suas inspirações quando o despertador os chamarem para suas obrigações mundanas na manhã seguinte? Tudo mudara.
Mas para Nicholas, a única constante caminha agora em seu lado. Mas será que a harmonia entre ele e Jill fora abalada pela aventura na outra dimensão? Algum acorde errado fora colocado? Se fora, que seja criado um novo nível de harmonia para que ele faça sentido na música que rege a sintonia entre os dois.
Dobraram a esquina, mais alguns passos e logo iriam se separar pela primeira vez em duas trocas de dimensões. Nicholas sentiu que uma parte de si estava prestes a se separar dele e, num impulso desenfreado quase transcreveu a música que esteve durante boa parte de sua vida presa em seu peito, mas que ainda faltava a letra.
- Sabe Jill, meio que fiz umas contas de cabeça aqui e acho muito pouco provável que nesta vida eu viva tamanha aventura novamente com outra pessoa. Acho que hoje todos os dias mais incríveis de minha vida acabaram de descer uma posição.
Percebeu que não poderia continuar falando. Ambos estavam carentes de um consolo pelo regresso de tamanho golpe existencial. Talvez um abraço dos deuses aliviasse a pressão que forçava seus peitos. Um momento de admiração mútua tão sonhado acontecendo justo quando mais nada no mundo parecia importar. Será que não é mesmo euforia disfarçada de frustração?

Por uns instantes tentou reencaixar os cubos mágicos de seus pensamentos com novas e necessárias cores imaginárias. Percebeu que talvez aquelas circunstâncias fossem favoráveis para usufruírem do sentimento mútuo de forma que jamais sonharam. Talvez não houvesse mais como ajudar a humanidade voltar à estrada certa, tão distante que levaria milênios para chegar nela, e isso se soubessem o caminho correto num infinito emaranhado de desvios equivocados ao longo da viagem.
Mas e se talvez o sentimento mútuo entre os dois fosse uma imensa e impenetrável montanha que forçasse a humanidade a voltar pela estrada de onde estavam vindo? Já seria alguma coisa.

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Felipe Afonso

Eventualmente disponível para sensações que trazem palavras iradas de se encaixar. @ffelipetico ffelipesiqueira@gmail.com